Durante os anos de 2015 a 2020 executamos ações de extensão com a população Guarani em torno do registro da memória. Com as comunidades Guarani realizamos diversas oficinas, encontros de jovens, encontros de Oporaíva (xamãs) e de líderes políticos. Uma série de produtos foram realizados ao longo desses anos, resultado dessas ações. Porém, entendemos que ainda há diversos aspectos que precisam ser contemplados, em parte porque os tempos e ritmos do povo Guarani são distintos dos tempos da universidade, segundo porque o nosso tempo, enquanto docente e discentes de extensão é limitado devido aos trabalhos de docência e de ações admirativas e, por fim, porque na medida em que as memórias são reveladas, novas demandas surgem.
O tema desse projeto, está vinculado a memória em torno da resistência e dos enfrentamentos que ocorreram no final dos anos 1970 início de 1980, quando a Itaipu Binacional foi finalizada alagando as terras Guarani. Nessa época ocorreu aquilo que os Guarani denominam de sarambi ou esparramo geral. Sem entender a amplitude da obra, sem assistência e ameaçados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e Itaipu e, sem assistência da Fundação Nacional do Índio (Funai), os Guarani que habitavam as margens do rio Paraná se esparramaram pela região em busca de locais seguros.
A Funai, como órgão indigenista de proteção, deveria amparar a população e defender sua integridade física, porém os documentos demonstram que ela corroborou com a Itaipu e o Incra e passou a transferir as famílias que insistiam em permanecer na beira do rio. Uma das famílias resistiu e não abandonou o local, trata-se de Fernando Martinez conhecido como Kambai. Sua ação, potencializada por apoio das organizações da sociedade brasileira, dentre elas o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Associação Nacional de Apoio ao Índio (ANAI), resultou no reconhecimento, mesmo que parcial de seu direito sobre a terra, obrigando a Itaipu a reassentá-los. Dessa resistência/teimosia, resultou na comunidade do atual Ocoy, em São Miguel do Iguaçu e das demais comundiades na região. Há um entendimento entre os Guarani de que se esse líder (Kambai) não tivesse resistido atualmente os Guarani sequer seriam reconhecidos na região.
Cremos ser necessário destacar o contexto regional e continental da população Guarani. Consideramos fundamental entender a interconexão da territorialidade Guarani entre o local (Tekoha), o regional (Tekoha Guasu) e Continental (Tetã ou Retã). Embora nossa ação tem incidência direta na região de fronteiras, os Guarani se relacionam permanentemente entre si independentemente de fronteiras.
Nessa região, local de nessa proposta de atuação, é também o local de origem do povo Guarani. Foi dessa região que a população Guarani expandiu seu território ocupando partes significativas da bacia do Prata e litoral atlântico, conformando o que conhecemos atualmente por território Guarani. Essas duas informações – origem e dispersão – nos obrigam a pensar que os Guarani que habitam esses Tekoha são parte de um povo ou de uma nação mais ampla, ou seja, a partir das redes de sociabilidade/parentesco se articulam com um universo amplo pela cosmologia, língua e migrações.
Dessa maneira, é importante salientar os riscos de proceder estudos com recorte espacial em caso de populações que ocupam espaço territorial amplo. Sobre esse tema destacamos a análise da antropóloga Kimiye Tommasino (2001, p.09):
Tornou-se praxe na academia utilizar o recorte espacial oficial (estado, região sul) e que não coincide com a espacialidade ou territorialidade indígenas. Por exemplo, estudou-se o Guarani no Paraná ou no Rio Grande do Sul resultando uma invisibilidade do território guarani tal como construído historicamente por eles, ou seja, trata-se de um território que ultrapassa as fronteiras estaduais e nacionais.
Em que pese a importância de estudos regionalizados, é mister compreender que essa população ocupa um território que se estende dos pés dos da Cordilheira dos Andes ao Atlântico. Dados arqueológicos e históricos coincidem em situar essa população nas terras baixas do Prata e litoral atlântico sul brasileiro.
Nossa Ação de Extensão parte do pressuposto básico da relação interétnica entre Estados e populações Guarani. É a partir da dimensão das tensões historicamente estabelecidas que desenvolveremos nossa ação fortalecendo as dimensões próprias da cultural Guarani, elemento central da sua resistência. O Estado brasileiro mantém assistência e proteção aos povos indígenas desde 1910 com a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e posteriormente da Fundação Nacional do Índio (Funai). A existência desses órgãos não significou proteção às populações indígenas tampouco garantias territoriais, ao contrário, esses órgãos indigenistas fizeram uso do regime tutelar para negar os direitos. No caso do Oeste do Paraná evidencia-se com nitidez esse processo, quando os Guarani foram removidos de seus territórios para criação do Parque Nacional do Iguaçu, para construção de Itaipu Binacional e liberação das terras para assentar colonos. Em todos esses contextos tanto SPI como Funai nada fizeram para proteger essa população, ao contrário, os documentos provam que foram esses mesmos órgãos que autorizaram a expropriação das terras Guarani. Ao chegar no século XXI essa população encontra-se sem-terra e desrespeitada em seus direitos.
Por outro lado, a população Guarani, especialmente os mais velhos, que experenciaram esses processos de violências conservaram a memória e são testemunhos da história. Dessa maneira consideramos relevante o registro dessa memória para uso social nos novos espaços criados na interlocução com a sociedade não indígena, qual seja, a escola.
A permanência dessa população a partir de processos de resistência sistêmica ocorreu pela dimensão cultural, fundamentalmente no aspecto religioso. A língua é sem sombra de dúvida um diferencial, porém mesmo considerando que alguns indivíduos não falam mais a língua, mantém a dimensão religiosa com elemento agregador e diferenciador do ser Guarani.
Outra dimensão relevante para nossa Ação de Extensão será relacionar a história Guarani contemporânea com os elementos sistematizados pelas pesquisas etnográficas, históricas e arqueológicas. Localizamos informações que comprovam que os Guarani habitam as terras baixas do cone sul da América, região de clima subtropical há pelo menos dois milênios (BROCHADO, 1982), território que se estende ao sul do Trópico de Capricórnio, do litoral Atlântico às planícies anteriores aos Andes, atual território boliviano, ao sul incursionavam até a atual Buenos Aires. A época da ocupação europeia estima-se que haviam mais de 2 milhões de habitantes (P. CLASTRES, 1978; MELIÀ, 1988). O primeiro registro de contato com europeus ocorreu na Baía da Babitonga, atual São Francisco do Sul/SC em 1504, quando Binot Paulmier de Gonneville, navegador a serviço da coroa francesa, levou para a França dois Guarani, Iça-Mirim e Namoa (SANTOS, 2004, p. 25), prometendo trazê-los de volta, fato que nunca ocorreu.
O nome “Guarani” foi registrado pela primeira vez na carta de Luís Ramires, tripulante da expedição do veneziano Sebastião Caboto a serviço da coroa espanhola, quando navegavam pela bacia do Prata em 1528 (MELIÀ, 1986).
Porém, durante séculos foram empregados inúmeros nomes para designar parcialidades ou mesmo a totalidade da população, sendo nomeados a partir de critérios exógenos.
São diversos os registros de contatos amistosos entre Guarani e europeus nesses primeiros anos de ocupação. Ocorre que sem os conhecimentos geográficos e agronômicos dessa população e sem o aporte de alimentos, retardaria significativamente o domínio europeu. Um dos registros mais significativos da dimensão espacial, territorial e linguística do povo Guarani foi efetivado pelo governador do Paraguai Álvar Nuñes Cabeza de Vaca. Ao partir da atual Florianópolis para tomar posse do governo em Asunción, foi guiado pelos Guarani através dos caminhos pré-coloniais. Nos registros do governador constam que essa população, que se convencionou chamar de Guarani, “fala uma linguagem que é entendida por todas as outras costas da província” (CABEZA DE VACA, 1999, p.177). Menciona também a fartura de alimentos que os Guarani produziam: “Os espanhóis festejavam alegremente o Natal, pois os índios lhes traziam toda espécie de comida que conheciam. Como todos estavam sem se exercitar, a comida em excesso chegava a causar mal-estar em alguns” (CABEZA DE VACA, 1999, p. 163), permitindo afirmações de que a agronomia Guarani era mais apurada que a europeia (MELIÀ, 1988). É comum encontrar na bibliografia histórica a existência de diversos núcleos populacionais, denominados Guára (SUSNIK, 1980), ou seja, conjunto de aldeias/tekoa/ ou Tataypy Rupa e que dadas as singularidades levaram diferentes viajantes a registrá-los como se fossem povos distintos. A atual classificação aceita no Brasil como Mbya, Nhandeva e Kaiowá que ocorre a partir de aspectos linguísticos e da cultura material foi resultado das pesquisas de Egon Schaden (1974).
Soma-se a dimensão sócio cultural a configuração territorial desse povo na qual a arqueologia tem relevância significativa na confirmação da documentação história. Há aceitação entre arqueólogos que as primeiras migrações Guarani ocorreram da Amazônia, bacia do Madeira-Mamoré sua região de origem, em direção às terras baixas e florestadas na bacia dos rios Paraná/Paraguai estabelecendo um território de domínio exclusivo (SCHMITZ; FERRASSO, 2011) onde desenvolveram a agricultura há pelo menos 2000 anos A.P. Posteriormente, expandiram o território a partir de novas migrações. O apogeu da expansão territorial ocorreu no início do segundo milênio de nossa era, quando atingiram as terras litorâneas e o vale do rio Uruguai (SCHMITZ; FERRASSO, 2011), com registro de presença entre 900 a 1.000 anos A.P. (BANDEIRA, 2004), período em que conquistaram regiões antes ocupadas pelos grupos de tradição “Jê”, ancestrais dos atuais Xokleng e Kaingang (NOELLI, 1999-2000). Há controvérsia se teria ocorrido sobreposição ou uso comum do território, o que é possível afirmar, segundo Noelli é a plasticidade da organização social, política e do parentesco e a grande capacidade de se adaptar ao meio, que permitiu aos Guarani a expansão para um amplo território:
A partir de uma revisão exaustiva da bibliografia Guarani, de estudos arqueológicos e visitas a diversas coleções de museus e sítios arqueológicos do Sul do Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina, feitos nos últimos 12 anos, foi possível concluir que os Guarani tinham a prescritividade como norma. As pessoas não-Guarani e as “coisas novas” eram incorporadas e enquadradas nos seus códigos e estruturas. As inúmeras fontes indicam que os Guarani eram “radicalmente” prescritivos, reproduzindo-se continuamente com pouca variabilidade na cultura material. Caso contrário, a contínua assimilação de pessoas de outras etnias e a adaptação aos ambientes do Sul do Brasil poderiam resultar em mudanças significativas e evidentes. É preciso reconhecer que os Guarani representam diversas populações que tinham em comum língua, cultura material, tecnologia, subsistência, padrões adaptativos, organização sociopolítica, religião, mitos, etc. Há, evidentemente, variações em nível dialetal, de adaptabilidade e de etnicidade. (NOELLI, 1999-2000, p. 248).
Uma das principais características dos Guarani e talvez a mais abordada na etnologia, diz respeito a mobilidade. Segundo Melià (1989, p. 294) “a migração, como história e como projeto, constitui um traço característico dos guarani,” embora reconheça que muitos grupos nunca tenham realizado uma migração efetiva. As migrações receberam interpretações variadas desde a busca da Terra Sem Mal (NIMUENDAJU, 1987; MÉTRAUX, 1927), a fuga das violências físicas, epidemias, escravização e maus tratos (FAUSTO, 1992), como a busca de espaços ambientalmente preservados, ou seja, Terra Sem Mal, como “suelo intacto, que no ha sido edificado” (MELIÀ, 1991). As diferentes interpretações não representam exclusões, ao contrário, evidenciam que a dimensão ambiental adquire relevância significativa nos estudos de mobilidade e conflitos atuais.
No contexto das comunidades Guarani na região da tríplice fronteira, local de nossa pesquisa e extensão, a construção da Hidrelétrica de Itaipu (década de 1970 e 1980) pode ser considerada um evento marcante na pressão exercida sobre o território Guarani, tanto do ponto de vista do alagamento de inúmeras aldeias/Tekoha Guarani em ambas as margens do rio Paraná[1] como a chegada de novas levas de migrantes não indígenas que se instalaram naquela região. Pressionados, os Guarani que habitam a margem esquerda do rio Paraná foram buscar abrigo nas terras paraguaias (CARVALHO, 1981) e outros se espalharam pelo interior dos estados brasileiros. Apoiados por instituições de Direitos Humanos regressaram ao Brasil e passaram a demandar terras.
Como base nesses elementos concluímos que estudos sobre as migrações atuais dessa população não podem desconsiderar os fatores externos de pressão e que desde o período colonial a mobilidade Guarani é uma constante, desfazendo a interpretação errônea e de cunho preconceituoso de que nos últimos anos o Brasil estaria vivenciado uma “invasão” de “Guarani paraguaios” (REVISTA VEJA, Veja ano 40 nº 11, de 14/03/07 e Veja ano 43 nº 18, de 05/05/2010).
Inicialmente acreditava-se que as migrações tinham um fluxo unilateral, de oeste para leste. Essa interpretação estava calcada nos registros de Nimuendaju (1987), que indicou a chegada ao litoral paulista dos Tañiguá (1820), dos Oguahuíva (1820) e dos Apapokúva (1870 e 1912), e na etnografia produzida na década de 1970 por Egon Schaden (1974, p. 4), observando que “ligam-se correntes migratórias, provenientes do Oeste, que se vêm sucedendo desde o primeiro quartel do século passado”. Em outra passagem, o autor indica que as migrações mais recentes foram dos Mbya do leste paraguaio e nordeste argentino que, atravessando o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e o Paraná, chegaram ao litoral de São Paulo. A etnografia de Schaden é produzida exatamente no momento em que ocorriam intensas migrações, especialmente dos subgrupos linguísticos Mbya e Nhandeva (Ava-Guarani) cujos territórios estavam sendo desflorestados e ocupados intensivamente pela agropecuária. No entanto, estudos recentes (DARELLA, 2004; BRIGHENTI, 2010) vêm demonstrando que a mobilidade Guarani não obedece necessariamente a um sentido unidirecional – oeste-leste – ao contrário, assemelham-se mais a sistemas circulares, e se alongarmos o período de observação essa constatação fica mais evidenciada
[1] Na margem esquerda do Rio Paraná foram indicadas 34 aldeias submersas pelo lago (GRÜMBERG, 2008). Na margem direita não há estudos conclusivos, porém, um estudo preliminar desenvolvido pelo Cimi Sul indicou a possibilidade de que diversas aldeias ficaram submersas (CIMI SUL,1982).
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