A prática da leitura, especialmente da leitura crítica, deve ser não só um prazer, mas um dever daqueles que buscam entender melhor o mundo em que vivem e suas relações de poder, bem como desenvolver uma consciência política e um espírito crítico. Infelizmente, vemos cada vez mais uma desvalorização social da leitura e, consequentemente, um despreparo de muitas pessoas ao lidar com os inúmeros discursos com os quais nos deparamos cotidianamente. Muitos fatores podem ser apontados como razões desse fenômeno, desde o sucateamento da educação básica e média até as mudanças culturais desencadeadas pela tecnologia contemporânea, em constante mutação. De qualquer forma, suas consequências são claras. A falta do hábito de leitura impede seu aprimoramento: há dificuldade em ler textos mais complexos e mesmo os mais simples impõem dificuldades de compreensão. Discursos de convencimento encontram cada vez menos oposição crítica: raciocínio simplistas (e falhos) ganham adesão daqueles que não detectam nos discursos que os impõem suas contradições, seus mecanismos de sedução fácil, mesmo sua má-fé, em muitos casos. A falta de repertório cultural deriva em uma pobre visão de mundo: o confinamento contemporâneo a nichos de interesses dificulta também o desenvolvimento do senso crítico e alimenta o crescente confinamento dos saberes a campos muito reduzidos e que, sem serem contestados, moldam visões de mundo limitadas e unidimensionais.
A literatura, para além de suas aspirações estéticas, se presta também a ser uma modalidade de leitura desafiadora. Seja pela linguagem “estranha”, apartada de nossa linguagem do dia-a-dia, seja pela proposição de temas e problemas que nos colocam em posições inusuais e nos instigam a pensar de maneira diferente e inédita, a literatura faz pensar. Assim se dá também com a chamada “literatura policial”, a despeito de rótulos como os de “alienante” ou “esteticamente pobre”, que muitas vezes recebe. De fato, tal fenômeno pode ser notado em toda literatura catalogada nos chamados gêneros “populares” ou “massivos”: a ficção científica, o terror, o romance de aventura, etc. Em resumo, especialmente na área dos estudos literários acadêmicos, o próprio conceito de “gênero” literário passou a ser visto como uma categoria limitante e empobrecedora, que não se deve mais aplicar às chamadas obras da “alta literatura”. Felizmente, justamente a partir de um pensamento crítico e inquisidor, também são vários os críticos e estudiosos da literatura que buscam entender mais esse conceito de gênero, buscando ver como ele se relaciona com a literatura contemporânnea.
Para o crítico francês Antoine Compagnon, por exemplo, o conceito de gênero desloca-se, contemporaneamente, do escritor – ou seja, da produção do texto – para o leitor – a recepção dele. Compagnon afirma sobre a pertinência teórica do conceito de gênero que: “[...] é a de funcionar como um esquema de recepção, uma competência do leitor, confirmada e/ou contestada por todo texto novo num processo dinâmico.” (2010, p. 155) Não por acaso, tal afirmação se encontra no apartado “O gênero como modelo de leitura”, dentro do capítulo “O leitor” de seu O demônio da teoria (2010). Em consonância com esta ideia, o escritor argentino Jorge Luis Borges já havia afirmado, no artigo “O conto policial”, que “os gêneros literários dependem, talvez, menos dos textos que do modo corno estes são lidos. O fato estético requer a conjunção do leitor com o texto, para só então existir.” (1999a, p. 220) A partir desse ponto é possível se passar à concepção de gênero literário como uma abordagem específica da leitura e nossa ideia aqui será a de tratar o gênero policial como uma abordagem crítica da leitura.
O escritor argentino Ricardo Piglia, ao conformar sua literatura com leituras, releituras e citações de leituras, ao mesmo tempo em que conforma sua “realidade” literária baseando-se fortemente na ideia do crime, do delito e da violência conduz, naturalmente, a uma ideia muito explorada por ele: mesclar os dois temas – a leitura e o policial –, reiterando a imagem do escritor como criminoso – transgressor – e do leitor, especialmente do leitor-crítico, como detetive em busca das pistas que permitam elucidar o crime – a própria obra literária. Esta construção perpassa vários de seus textos críticos: em Crítica y ficción, afirma que “[e]n más de un sentido el crítico es el investigador y el escritor es el criminal” (2001, p. 15); a frase que abre “Notas sobre literatura em um Diário”, em Formas breves, é “Emma Zunz ou a narrativa como crime perfeito” (2000, p. 79); em El último lector, comenta-se que “[u]na de las mayores representaciones modernas de la figura del lector es la del detective privado (private eye) del género policial” (2005, p. 77).
A metáfora do leitor-detetive não é, de qualquer modo, uma invenção de Piglia e, evidentemente, não é uma exclusividade de seu repertório crítico, sendo quase um lugar-comum no estudo da literatura. Ao se definir o detetive como um decifrador, por exemplo, pode-se citar o paradigma indiciário de Carlo Ginzburg , citado também por Antoine Compagnon ou Júlio Pimentel Pinto . Ainda quando a metáfora não é explícita – o leitor pode ser identificado com o caçador e o adivinho e não com o detetive, propriamente, ao passo que este pode remeter a um observador arguto, mais que ao leitor especificamente –, a analogia continua válida ao se pensar que o detetive não só “lê” as pistas do crime, como também formula hipóteses para sua elucidação – como o adivinho – e deve “caçar” e prender o criminoso – como o caçador. Ao leitor, por sua vez, cabe observar com atenção e agudeza para – como o detetive – descobrir o que há por trás da aparência superficial do texto – ou do crime.
O gênero policial ressalta a metáfora do leitor-detetive, propondo muitas vezes ao leitor que, acompanhando os indícios revelados pela narração, faça também o papel do detetive formulando suas hipóteses para a resolução do crime e consequentemente para o desfecho da intriga narrada. Não obstante, é importante ressaltar também que, do ponto de vista da crítica literária – ao menos da crítica desenvolvida por Piglia e Compagnon, por exemplo –, a metáfora leitor-detetive pode ser aplicável à leitura de qualquer texto, não só à dos pertencentes ao gênero policial. Entende-se neste caso que a leitura é o deciframento dos signos que estão presentes em todo texto e podem ser mais ou menos implícitos e enigmáticos . Assim, o encontro do leitor-detetive com o gênero policial na obra de Piglia não é uma ocorrência que se poderia considerar de antemão previsível ou obrigatória. Dito de outro modo, Piglia poderia cultivar a imagem da leitura como investigação em seus textos críticos sem que sua obra ficcional se voltasse para o gênero policial. Do mesmo modo o gênero policial não implica automaticamente uma adesão, em termos teóricos, à metáfora do leitor-detetive. Em entrevista dada a Guillermo Mayr (2009b), o próprio Piglia afirma:
Yo creo que el modelo del relato como investigación no supone ni exige que el investigador sea un policía o un detective, ni que esté investigando un crimen o un delito. El modelo de investigación puede servir para construir relatos donde la investigación tenga otra función; no hay que asimilar "investigación" con "resolución del crimen". Entonces, para mí, el género policial ha funcionado como una estrategia narrativa fundada, básicamente, en la idea del relato como investigación.
É uma visão da leitura como constructo do mundo ficcional e uma visão da construção do real como relato policial que levam as duas ideias a se mesclarem. Para Daniel Link, a “outra razão que torna interessante o policial é estrutural: o policial é um relato sobre o Crime e a Verdade. É nesse sentido que o policial é, além do mais, o modelo de funcionamento de todo relato [...].” (2002, p. 73)
É, então, a partir da ideia de Link de que a narrativa policial pode ser “o modelo de funcionamento de todo relato” que buscaremos desenvolver este projeto de extensão e suas ações através de cursos de extensão oferecidos à comunidade acadêmica e ao público externo à universidade. Partindo do aspecto lúdico da leitura de literatura, especialmente de uma popular e mesmo, ainda que muitas vezes injustamente, taxada de “simplista”, o que se buscará é o desenvolvimento de uma leitura crítica e, mais do que isso, de um pensamento crítico, bem como o de um aumento do repertório cultural dos participantes do projeto.
Discentes, docentes e técnicos de toda a UNILA
População em geral de Foz do Iguaçu interessada em narrativas policiais
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